terça-feira, 26 de abril de 2011

“As romarias são um caminhar na Via Crucis”

" “As romarias são um caminhar na Via Crucis (caminho da cruz) ” – Citação do Reverendíssimo Cónego Gil de Sousa.
Esta curta, clara e concisa citação, caiu como se fosse uma pequena pedra que é lançada à água, formando ondas circulares cada vez maiores ao seu redor, no seio do grupo onde foi proferida.
Confesso que, apesar de tudo o que já foi dito e escrito (pequeníssimas migalhas para explicar uma vivência real), nunca me tinha ocorrido este ponto (entre muitos outros) de vista.
Ruminando (poeticamente falando) esta citação, aos poucos fui sentindo e vislumbrado, que em romaria, na verdade vivemos e sentimos a Via Sacra de Jesus Cristo. Não da maneira que Ele viveu e sentiu mas, à maneira de romeiro, se é que existe uma “maneira de romeiros”, senão vejamos:
1ª Estação (Jesus é condenado à morte) – Quantas vezes, entre terços, meditações e caminhando sempre atrás da cruz, “somos condenados” por irmãos em Cristo, que se cruzam connosco, e muitos destes (quais Pilatos), lavam as mãos à nossa passagem, perante essas “condenações” consentidas com o seu silêncio.
2ª Estação (Jesus carrega com a Cruz) – Como Ele, nestes dias carregamos a nossa e as daqueles que, cruzando connosco, nos pedem auxílio para as suas dores, muitas vezes atrozes. Não é uma cruz de madeira a que carregamos, no entanto, quantas vezes não Lhe pedimos que antes fosse, sem pensarmos na profundidade subjacente à verdadeira Cruz.
3ª Estação (Jesus cai pela primeira vez) – Tantas vezes que nos vem ao pensamento as inúmeras quedas que damos na vida. Jesus caiu porque tomou sobre si todas as nossas doenças, todas as nossas dores e todos os nossos crimes. Nós, pecadores assumidos, também caímos, não uma vez nem a primeira vez, mas sim diariamente com as faltas que cometemos contra Deus.
4ª Estação (Jesus encontra a sua mãe) – Em romaria, inúmeras são as vezes em que nos encontramos com a mãe de Deus e nossa mãe. Nos desabafos em silêncio com ela tidos, vai guardando-os no seu coração, mesmo que eles trespassem a sua alma.
5ª Estação (Simão de Cirene ajuda Jesus a carregar a cruz) – Quando um irmão tem uma bolha, uma ferida, dores ou sofrimento, logo outro acode e auxilia-o, qual Simão, mas aqui, sem ser forçado, sem constrangimento e sem imposição.
6ª Estação (Verónica limpa o rosto de Jesus) – Em cada acto de caridade que façamos, o Salvador imprime a sua imagem nos nossos corações como o fez no lenço de Verónica.
7ª Estação (Jesus cai pela segunda vez) – Jesus cai pela segunda vez sob a Cruz. Cai exausto pelo esforço feito. Cai por vontade do Pai e cai por sua vontade própria, porque "como se cumpririam então as Escrituras?". Também nós caímos exaustos no fim de cada dia da romaria. Caímos por vontade do Pai, para que no fim da romaria, qual Saulo, caíamos definitivamente do cavalo e nos tornemos em Paulo.
8ª Estação (As mulheres de Jerusalém choram por Jesus) – Como é gratificante podermos derramar algumas lágrimas, não por Ele, mas através d`Ele chorarmos como sinal de arrependimento, do verdadeiro arrependimento.
9ª Estação (Jesus cai pela terceira vez) – Pedro também o negou por três vezes, e quanto a nós, não bastam estes dias para Lhe pedir perdão das nossas quedas, fraquezas e negações, mas são o bastante para nos apercebermos qual o nosso papel na sociedade.
10ª Estação (Jesus é despojado de suas vestes) – Como cristãos devemos também nós despojarmos, não das vestes, do amor, da paz ou do essencial. Devemos, isso sim, despojarmos do ódio, da guerra e principalmente do supérfluo. Em romaria levamos apenas o essencial e basta-nos!
11ª Estação (Jesus é pregado na cruz) – Com Ele foram também cruxificados dois ladrões. Um insultava-o dizendo-lhe “Não és Tu o Messias? Salva-te a ti mesmo e a nós também.” Mas o outro, tomando a palavra, repreendeu-o: “Nem sequer temes a Deus, tu que sofres o mesmo suplício? Quanto a nós, fez-se justiça, pois recebemos o castigo que as nossas acções mereciam, mas Ele nada praticou de condenável.” E acrescentou: «Jesus, lembra-te de mim, quando estiveres no teu Reino.” Dois homens como tantos outros, dois homens como todos nós. Durante a caminhada, tantas são as vezes que nos lembramos desta passagem peculiar e em qual dos dois nos enquadramos mais. Que bom seria se fossemos quase sempre o segundo.
12ª Estação (Jesus morre na cruz) – “Eloí, Eloí, lemá sabachtáni?”, que quer dizer: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (…). “. Quantas vezes nas nossas vidas não dizemos o mesmo? Talvez digamos em demasia, talvez em situações em que Ele afinal nos leva ao colo e talvez faça silêncio propositadamente. Quão belo é o silêncio que experimentamos e experienciamos, nesta caminhada diferente de todas as outras caminhadas conhecidas, na qual Deus nos fala. Não através da brisa que passa ou do vento que se levanta, como “naquele tempo”, mas sim através do barulho ensurdecedor dos pingos grossos de chuva forte que teima em cair indo até ao tutano dos nossos ossos ou das rajadas de vento que passam e quase nos encostam à parede de tão surdos que somos nos dias de hoje, para O ouvirmos.
13ª Estação (O corpo de Jesus é retirado da cruz) – “Já depois de ter expirado fortemente, o centurião que estava à frente dele ao vê-Lo expirar daquela maneira disse: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus!” Era tarde para se voltar atrás, no entanto tinha que ser assim, para se cumprir o que estava escrito. Uma romaria também tem que ser “assim”. Penitência, oração e meditação. Olharmos para dentro de nós mesmos, para os nossos podres, para os nossos pecados mais recônditos e pedir-Lhe perdão até à exaustão dos nossos músculos.
14ª Estação (O corpo de Jesus é colocado no sepulcro) – Tal como o Seu corpo é colocado no sepulcro, também o nosso, no fim de mais uma caminhada, estrompado, por vezes marcado e com algumas mazelas, ao chegar ao Santuário de Nossa Senhora da Conceição, repousa, por momentos, no regaço da Sua e nossa mãe Maria Santíssima. Por breves instantes quase que vislumbramos o seu olhar terno, doce e meigo, misturado com um ligeiro sorriso de agradecimento, por mais um ano que O levamos ao mundo que cada vez mais O nega e O tenta esconder do homem como criatura de Deus.

Depois deste “longo” caminhar pelas 14 estações, dou-me conta que as romarias ainda conseguem ir um pouco mais longe. As romarias têm o “dom” de passarem toda a Via Crucis e vivenciarem ainda a 1ª estação da Via Lucis (caminho da luz), a Ressurreição de Cristo, quando um irmão que caminha uma romaria em negação chega ao fim, e entre choros e soluços nos diz:
- Até para o ano irmão!1

Post-scriptum – Na missa vespertina do passado sábado a que assisti, o padre que ali estava a celebrar o Santo Sacrifício da Missa, e no decurso do seu excelente e agradável sermão referiu que, numa determinada igreja (não sei precisar qual) da nossa cidade existia um crucifixo, por detrás do qual tinha um grande e glorioso resplendor, como que nos mostrando que Cristo depois da morte, obteria a redentora e gloriosa vida eterna, tal como todos nós que professamos a nossa fé. Na altura lembrei-me de uma outra igreja, a de São Carlos, na qual, quando as luzes estão ligadas, podemos ver Cristo Ressuscitado, criando por detrás a sombra da cruz onde esteve pregado até à morte. Se na primeira igreja acima citada vemos a esperança da vida eterna, na segunda, vemos a esperança tornada realidade, no entanto, continua presente o mistério da Cruz. !"
1 Lucas 5, 31-32



Artigo publicado no Jornal "A União" da passada 6ª feira.

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