segunda-feira, 11 de abril de 2011

Romeiros - Expiar os pecados

Passa já mais de uma semana desde que os Romeiros do Santuário de Nossa Senhora da Conceição saíram à rua. Terminada a caminhada de fé, fica, nos homens que se assumem pecadores, a esperança de mudança e rejuvenescimento interior. É que a viagem, mais do que física, é espiritual.


"No lado norte da ilha, o céu pesado pa¬rece cair-nos aos pés. Carregado de uma chuva teimosa e de nevoeiro, o ar da manhã mistura-se ainda com os cânticos compassados e roucos dos romeiros, cuja jornada dura já há um dia. Faltam ainda quatro, porque a vida de romeiro é mesmo assim: faça sol ou faça chuva é preciso caminhar e rezar, de olhos postos no xaile da frente. Encontramo-los na freguesia dos Biscoi¬tos. Ali, à porta da igreja, homens diferentes, de todas as idades e de todas as escolas, unem-se na fé. Dizem-se “irmãos” e é assim que se sentem, como uma família. Agora é hora de rezar e meditar. “Dai-nos licença, Senhora, Rainha Imaculada, para que entremos agora em vossa santa morada”, repetem a cada vez que se preparam para passar a porta de uma das igrejas da ilha. De todas as igrejas e ermidas da ilha, as que lhes recordam que a procura pelo eterno é longa e constante. Os bordões que trazem consigo durante toda a viagem ficam do lado de fora, menos no primeiro dia da caminhada. O regulamento do romeiro, com 52 artigos, é para ser cumprido. Há já cinco anos que é assim. O rancho de Romeiros do Santuário de Nossa Senhora da Conceição juntou-se para fazer renascer uma tradição que há mais de um século estava adormecida na Terceira. Diz-se que a romaria açoriana terá nascido em São Miguel, pela mão dos sacerdotes de Vila Franca do Campo que terão instigado o povo à peregrinação por capelas, igrejas e ermidas, numa altura em que “a primeira capital micaelense” foi abalada por sismos e erupções, em 1522 e 1563. Ainda assim, Gaspar Frutuoso, historiador açoriano do sécu¬lo XVI, dá conta nas suas memórias da existência de romarias na Terceira. Também aqui se juntavam os homens para pedir clemência divina que os livrasse das catástrofes que não podiam controlar, e prova disso são as casas de romeiros que ainda existem na ilha e que vão resistindo à passagem do tempo e dos costumes. Hoje, os pedidos são outros, a procura é outra, mas a verdade é que a missão de um cristão, aqui ou do outro lado do mundo, é seguir o seu criador. De outra maneira não faria sentido. João Nogueira tem quase 63 anos e diz-nos que enquanto puder é isso que vai fazer. “Uma vez romeiro, romeiro para sempre”, assinala, juntamente com Adalberto Couto, de 58 anos. Os dois irmãos romeiros, cansados mas não vencidos, consentem em trocar connosco algumas palavras. Nas mãos carregam o bordão que simboliza o cetro de Jesus. Aos ombros trazem consigo o xaile, a lembrar o seu manto. Ao pescoço está o lenço que recorda a coroa de espinhos usada por Cristo e os terços, que representam Nossa Senhora, mãe dos romeiros, a quem rezam ao longo de toda a caminhada. O rancho que agora acompanhamos é feito de homens crentes que têm fé no poder da experiência que iniciaram to¬dos juntos. “Há qualquer coisa que nos toca o interior”, tenta explicar-nos João Nogueira. Talvez sejam as palavras sá¬bias e verdadeiras do padre Dinis, irmão contra-mestre, que, segundo nos contam, tem o dom de vergar o homem com o coração mais duro. Na romaria, as palavras têm a duração de uma vida. É que a cada caminhada o romeiro dispõe-se a reencontrar-se e reconciliar-se, consigo e com Deus. O diálogo, sobretudo interior e místico, prepara-o para enfrentar o resto do ano. A romaria é, na verdade, o início de tudo. “O que fomos nestes cinco dias mantém-se ao longo dos meses que seguem”, sustenta João Nogueira assinalando que “a viagem interior serve para pensarmos nas nossas vidas, no que poderíamos ter mudado e não mudámos, no que poderíamos ter feito e não fizemos e se estamos ou não preparados pa¬ra fazer melhor depois desta caminhada”. O objetivo é esse, explica-nos, mas isso não quer dizer que o romeiro, o homem que se assume pecador, não erre. Errar é humano. Adalberto Couto é, no rancho de Ro¬meiros do Santuário de Nossa Senhora da Conceição, o procurador das almas. É ele quem fecha o cortejo e quem se dirige às pessoas que querem dar as suas orações. Quem pede a oração tem de rezá-la tantas vezes quanto o número de romeiros que há no rancho e mais três pela Sagrada Família. Assim completa-se o ciclo. Cada um tem, pois, o seu papel nesta fa¬mília. O romeiro mais novo, o menino da cruz, abre o rancho. Do lado seguem os guias. O contra-mestre vai ao meio, seguido do lembrador das almas, que a cada cemitério lança a salva por quem lá está. A romaria é uma estrutura orga¬nizada que antes de partir em caminha¬da se junta para fazer a preparação espiritual e material que a jornada requer. Em longas horas de reunião, afinam-se as vozes, conversa-se sobre a experiência, ultimam-se pormenores. Todos têm que saber como se comportar. Há que lembrar, por exemplo, que antes de entrar numa casa é preciso lançar a salva, que o romeiro é o último a servir-se nu¬ma refeição e o último a deitar-se, e que na casa onde se pernoita reza-se o terço, que fica depois ao pescoço de quem ofereceu dormida. Há que saber que o romeiro tem de estar a pé às 4 da manhã, e tem de estar recolhido às 19 horas. É uma rotina diferente e todos têm saudades desses dias quando chegam ao fim. Todos têm vontade de regressar. “Passamos o ano à espera da romaria. Os meses custam mais a passar do que estes cinco dias”, adianta Adalberto Couto. Todos sentem o sacrifício, é claro. “Que não se pense que se vem para aqui fazer turismo. O irmão que vier com essa expectativa vê que estava enganado logo ao segundo dia”, diz-nos João Nogueira, vezes sem conta. É que a romaria são duas viagens: a física e a espiritual. Sinais dos tempos “Ser romeiro é aceitar e assumir perante todos que sou cristão, é dar a cara sem vergonha”, afirma João Nogueira. Di-lo de peito aberto. Ao contrário do que nos pudesse parecer, nem todos compreendem o porquê da caminhada e das vestes que trazem consigo. Ao longo da jornada, há quem lhes aponte o dedo e quem os ridicularize. Talvez seja o resultado de uma sociedade cada vez mais materialista e de gente cada vez mais desli¬gada da fé, acreditam os dois irmãos romeiros. Mas também há quem os acolha de braços abertos. Oferecem-lhe as casas e mesas fartas onde se podem sentar e des¬cansar um pouco. “Lembro-me de um dia, no primeiro ano em que saí na romaria, que comi 14 vezes. Há pessoas que querem dar muito”, adianta João Nogueira. Urge agora, defendem, chamar os mais novos à fé cristã e isso só se fará quando velhos e jovens comungarem da mesma linguagem. “A juventude de hoje não é a juventude do nosso tempo”, sustenta João Nogueira, que diz que a solução poderá estar na palavra se um padre mais novo que lhes saiba chegar ao coração. Adalberto Couto, que durante 27 anos acompanhou o Agrupamento 23 da Praia da Vitória, diz que falta trazer os jovens à rua, arrancá-los a uma vida de computadores e relações virtuais. Ainda assim, o rancho de Romeiros do Santuário de Nossa Senhora da Conceição apostou na construção de um blogue onde dá conta das suas atividade e onde divulga textos e informação sobre as romarias. Quem sabe se não será uma forma mais rápida e eficaz de espalhar a palavra. Nem todos os jovens se escondem atrás de um ecrã, é um facto. O número de romeiros tem aumentado e continua a registar-se a participação de caminhantes novos que contam com o apoio da família. É o caso de Floriberto Borges, de 13 anos, e de Gonçalo Nunes, de 14. Gostaram das histórias que ouviram contar sobre a romaria. Estão a aprender a partilhar com os mais velhos e apreciam sobretudo o convívio que a jornada proporciona. Ainda assim, do alto da sua sabedoria e com algumas dores nos pés, Floriberto explica-nos que a romaria “é caminhar por Nosso Senhor e sentir a dor que Ele sentiu”. Gonçalo, jovem de palavras prudentes, sustenta que se trata de “uma experiência que tem de ser vivida para que se compreenda a sua magnitude”. Não é só nos dias da jornada de fé que estes pequenos romeiros são católicos. Vão à missa e à catequese e não se queixam. Não são como muitos que João Nogueira vê dentro das igrejas, jovens irrequietos e barulhentos. Às vezes é di¬fícil sossegar-lhes os espíritos. “Não sei quem está mais certo”, frisa lembrado que “Deus veio ao mundo pelos pecadores e não pelos justos; não sei se eu que só por ser católico e por ir à igreja dizer ‘senhor’ estou mais certo do que aqueles que estão lá a fazer barulho... Talvez Deus esteja a velar mais por eles”. O certo é que quem se quiser juntar aos romeiros da Terceira é bem vindo. Desde que sejam homens, é claro. Nada contra as romarias femininas, até será uma boa forma de chamar mais gente à fé cristã, mas o estatuto do romeiro não permi¬te misturas. Em São Miguel já existe um grupo de romeiras que se juntam sozinhas na sua jornada. “Não digo que não possam existir, mas têm de ser diferenciadas. É uma forma de haver mais aber-tura”, considera Adalberto Couto. Dizer mais, escrever mais sobre as romarias e sobre o que nelas se sente, é impossível. “Só compreende esta experiência quem a vive”, assinalam os romeiros, dos mais pequenos aos mais velhos, vezes sem conta. E a emoção que trazem na voz faz-nos acreditar que é assim. "


Artigo publicado na revista do Jornal "Diário Insular" datado de ontem.

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