sexta-feira, 13 de abril de 2012

Rosarium Dei

Abaixo se transcreve uma reflexão feita pelo irmão José Maria, da qual retirou algumas passagens para a recitação do terço que fez na reunião passada.


O Rosário de Deus

Mistérios Gozosos

Os Mistérios Gozosos ou da Alegria constituem uma espécie de prólogo à Sagrada Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo[1]. Neles, a alegria de Nossa Senhora anuncia já essa “grande alegria” final “deste itinerário de glória do Filho e da Mãe”, “antecipação e ponto culminante da condição escatológica da Igreja” [2].

1.º Mistério: a Anunciação a Nossa Senhora

Se o Baptismo de Jesus nos remete para a Justiça de Deus (Sl 144,7; 1Pe 2,23b), como veremos, este primeiro Mistério de todo o Ciclo relembra-nos, sobretudo, a «humildade da Sua serva» (Lc 1,48). É S. Bernardo quem nos diz que foi a humildade de Maria que levou à sua virgindade, e não o contrário. Por isso, a “virgindade é uma virtude louvável, mas a humildade é imprescindível” [3]. Assim, em certo sentido, todos os aspectos e acontecimentos misteriosos de Jesus e da História da Salvação ficam a dever-se àquele «Eis a serva do Senhor: faça-se» (Lc 1,38): Maria “diz uma palavra e recebe a Palavra” [4]. E a partir dessa hora (cf. Jo 19,27), tal como a voz do Pai no Baptismo de Jesus, também na Anunciação Maria podia muito bem dizer consigo: «Este é o meu Filho muito amado, no qual pus todo o meu enlevo» (Mt 3,17).

2.º Mistério: a Visitação de Nossa Senhora a Isabel

Na Cruz, mais tarde, Jesus dar-nos-á Maria por Mãe (Jo 19,26-27), reflexo in contrario motu do episódio nas Bodas de Caná, no qual é Maria que expressamente nos dá o seu Filho: «fazei o que Ele vos disser» (Jo 2,5). Este Mistério antecipa, por assim dizer, essa entrega, já que Maria dá-se a Isabel (Lc 1,56), mas não sozinha: dá-se a si e ao seu Filho, isto é, Maria leva o Salvador a sua prima do mesmo modo que mais tarde o levará a toda a Humanidade[5], como Rainha dos Anjos e dos Santos, Mãe do «Deus forte, Pai eterno, Príncipe da Paz» (Is 9,5), Mãe na Apoteose da Santíssima Trindade. Por isso está este Mistério ligado ao da Coroação de Nossa Senhora: «donde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor» (Lc 1,43), Rainha do Céu e da Terra?

3.º Mistério: o Nascimento de Jesus em Belém

Se a Ressurreição de Jesus é o mais Glorioso dos Mistérios, o Nascimento do Salvador é o mais jubiloso[6]: «Glória a Deus nas Alturas e paz na terra aos homens do Seu agrado!» (Lc 2,14). Deve muito bem ter sido essa única Noite de Paz aquela em que verdadeiramente o Salvador descansou em toda a Sua vida terrena, Ele que, como «sinal de contradição» (Lc 2,34), «veio para o que era Seu, e os Seus não O receberam» (Jo 1,11), tendo logo após o nascimento suscitado hostilidade, martírio e perseguição pelo Seu próprio povo (Mt 2,1 passim; 4,12-13), Ele, que durante a vida pública não vai ter «onde reclinar a cabeça» (Lc 9,58).

4.º Mistério: a Apresentação de Jesus no Templo

Os dois últimos Mistérios, “mesmo conservando o sabor da alegria antecipam já os sinais do drama” [7], o que os liga, de certo modo, aos Mistérios da Dor. Para além das palavras de Simeão a Nossa Senhora e a S. José — «...e uma espada trespassará...» (Lc 2,35) — a Apresentação anuncia, assim, uma outra apresentação, muito mais tardia: o Ecce Homo! no Pretório de Pilatos (Jo 19,5): o mesmo Deus, o mesmo Homem, ambos indefesos por amor dos homens (Sl 8,5; cf. Heb 2,6), Mistério absoluto e insondável da Trindade de Deus, “abismo de caridade” [8].

5.º Mistério: a Perda e o Encontro de Jesus em Jerusalém

O episódio da perda e reencontro do Menino Jesus entre os Doutores da Lei (Lc 2,44-50) encerra uma daquelas respostas sem rodeios do Senhor, mesmo com a Sua Sagrada Família: «porque me procuráveis? Não sabíeis...?»[9]. no dizer de Frei Luís de Granada, “não se encontra Cristo entre os afectos e regalos da carne e do sangue, mas na renúncia e mortificação de todas estas ternuras” [10]. Apesar disso, a alegria do reencontro evoca duas outras passagens, uma do princípio, outra do fim, do Evangelho de S. João: em primeiro lugar, o último testemunho de S. João Baptista, reminiscência da alegria intra-uterina (Lc 1,41), quando diz que à voz do Esposo, o Seu amigo, que está presente e O ouve, é tomado de uma alegria completa (Jo 3,29). Deste modo, quase podemos imaginar a alegria de Nossa Senhora e de S. José ao discernir, cada vez mais próxima, a voz de Jesus, ao virar duma arcada no pátio do Templo... A segunda evocação é a alegria de Maria Madalena após reconhecer Jesus Ressuscitado junto ao sepulcro: «Rabbuni! (...) E foi anunciar aos discípulos: “Vi o Senhor!”» (Jo 20, 16.18).

Mistérios Luminosos

Os Mistérios Luminosos ou da Luz são assim chamados porque, neles, o Salvador faz incidir uma luz particular sobre Si próprio e sobre alguns passos misteriosos da Sua vida e, assim, também sobre a nossa, uma vez que «Ele é o primogénito de muitos irmãos» (Rm 8,29). Deste modo, ao lançar sobre eles alguma luz, a Sua luz (Jo 8,12)[11] e, na Transfiguração, toda a Sua luz, o Senhor, uma vez mais, exorta-nos a ter confiança (Jo 16,33; Lc 12,32), a não temer a escuridão, como nos ensina S. João da Cruz[12], a não recear sequer que uma coisa tão comum como o vinho possa faltar numa boda (Jo 2,3). Assim sendo, os Mistérios Luminosos, colocados sensivelmente a meio de todo o Ciclo, constituem uma antecipação da vitória final e definitiva de Cristo, expressa nos Mistérios Gloriosos.

1.º Mistério: o Baptismo de Jesus

Este primeiro Mistério é, por assim dizer, o pórtico desta série de cinco. Nele, Jesus lança luz sobre a dúvida de S. João Baptista que, ao ver aproximar-Se o Salvador, Lhe faz o seguinte reparo: «Eu é que tenho necessidade da Tua Salvação [ou seja, de ser baptizado por Ti], e Tu vens a mim para seres baptizado?» (Mt 3,14). A resposta de Jesus não se faz esperar: «É preciso que se cumpra toda a justiça» (Mt 3,15). De que justiça está a falar o Salvador? De toda a justiça que se encontra encerrada na História da Salvação de Deus, da qual todos os Mistérios, da Anunciação à Coroação de Nossa Senhora, são a via lucis, incluindo-se nesta, até, os Dolorosos, o «cálice de amargura» a ser bebido (Jo 18,11; Mt 20,22; Mc 10,38), porque se os dois últimos Mistérios Gozosos, como vimos, “antecipam já os sinais do drama” e são, assim, “obscuro prenúncio do mistério do sofrimento salvífico” [13], dentro da mesma História de Salvação os Dolorosos antecipam já os sinais da vitória e são, dentro de todo o Rosário, obscuro prenúncio do mistério da redenção gloriosa. Assim, este Mistério Luminoso, que abre a série, está intimamente ligado ao da Anunciação, que abre todo o Ciclo dos Mistérios do Rosário. Pelo meio, como vimos, teremos a Dor, porque era necessário que «o Filho (...) fosse erguido ao alto» (Jo 3,14). Ao ser baptizado, Jesus inaugura publicamente a Nova Humanidade (Jo 3,3-8) e mostra assim a todos os homens «do Seu agrado» (Lc 2,14) como, pela “doçura do Santo Baptismo” [14], é possível «nascer, sendo velho» (Jo 3,4).

2.º Mistério: a Revelação nas Bodas de Caná

Após o Baptismo, Jesus, «cheio de graça e de verdade» (Jo 1,14), para que assim se cumpra toda a Justiça, como vimos, vai para o deserto onde é tentado pelo «pai da mentira» (Jo 8,44). Vencida a tentação e afastado o tentador (Lc 11,22; 4,13), Jesus vai a um casamento onde, perante a falta de vinho, dá como resposta a Sua Mãe: «ainda não chegou a minha hora» (Jo 2,4). Que hora é esta? É a mesma da qual o mesmo Evangelista colocará na boca de Jesus: «Chegou a hora de se revelar a glória do Filho (...) Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dá muito fruto (...) Que hei-de dizer? Pai, salva-me desta hora? Mas precisamente para esta hora é que Eu vim!» (Jo 12,23-24.27), isto é, a hora da Sua Paixão, Morte e Ressurreição, a antecâmara da Glória, a consumação da obra redentora do Pai. Ou seja, ao levantar o véu sobre «tudo o que foi escrito pelos profetas acerca do Filho» (Lc 18,31), Jesus lança a luz suficiente sobre o mais misterioso de todos os desígnios do Pai: a «morte e morte de cruz. Por isso, Deus elevou-O acima de tudo e Lhe concedeu o nome que está acima de todos os nomes, para que ao nome de Jesus, se dobrem todos os joelhos, no céu, na terra e nos infernos, e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai» (Fl 2,8-11). No fundo, Jesus, sem lho dizer, faz com Sua Mãe o mesmo que fará mais tarde com a Samaritana: «Se conhecesses... » (Jo 4,10). Conhecendo Nossa Senhora a Jesus como ninguém[15], bem viu, como porta-voz junto de Jesus das necessidades humanas[16], que Ele poderia fazer qualquer coisa... E Jesus realiza «o primeiro dos seus sinais miraculosos, com o qual manifestou a sua glória» (Jo 2,11). Mas aparentemente remete-Se, e a Sua Mãe, ao silêncio, como se dissesse: «tenho ainda muitas coisas a dizer-vos, mas não sois capazes de as compreender por agora» (Jo 16,12; cf. Lc 2,50)... Com efeito, não admira que os discípulos, futuros Apóstolos, não entendessem «de que espécie de morte havia de padecer» (Jo 12,33): “se a própria Vida se manifestou na pessoa de Jesus de Nazaré, a questão da Sua Ressurreição parece secundária; o mais espantoso não é, com efeito, que Jesus tenha podido ressuscitar, mas que Jesus tenha podido morrer»[17].

3.º Mistério: o Anúncio do Reino de Deus

Ou o Peregrino do Infinito[18]. Tivesse este Mistério um subtítulo, poderia muito bem ser este. Toda a vida pública de Jesus foi (até em quilómetros) marcada pela incessante missão que o Pai peremptoriamente Lhe atribuiu na Transfiguração: de O escutarem (Mt 17,5; Mc 9,7; Lc 9,35). Se a Anunciação fora o anúncio de Jesus, agora Jesus faz o anúncio do Reino de Seu Pai, “Reino de Verdade e de Vida, Reino de Santidade e de Graça, Reino de Justiça, de Amor e de Paz” [19]. E que Reino é esse que Jesus anuncia? Em certo sentido, Jesus faz o anúncio de Cristo, porque o Reino de Deus, em última análise, é Ele próprio: «Eu e o Pai somos Um» (Jo 10,30). “Jesus anunciou o Reino, mas os primeiros cristãos anunciaram Jesus. Ele não só anuncia o Reino como é o protagonista e a forma desse Reino” [20]. Neste sentido, Jesus é o Reino porque é o Bem, a Verdade, a Justiça, a Vida, a Esperança, em suma, o Amor (1Cor 13, 13). Em diálogo com a Samaritana, todo ele arquétipo do anúncio do Reino, dirá Jesus: «eis que vem a hora (...) em que hão-de adorar o Pai em espírito e verdade» (Jo 4,23). Assim, com este Mistério, Jesus antecipa a verdadeira adoração, a da Eucaristia, «terra boa e farta, onde corre leite e mel» (Ex 3,8), «terra de delícias» que os homens desprezaram (Sl 105,24; Jo 1,11): o Seu próprio Corpo. E todo o Reino de Deus cabe num bocadinho de pão. Ele, que dissera: «não vos deixarei órfãos» (Jo 14,18), é Deus sempre connosco (Is 7,14). E assim como o mais belo e derradeiro anúncio da Sua Morte e Ressurreição Ele fê-lo no lava-pés[21], é este Mistério anúncio da Instituição da Eucaristia, mais tarde, na Última Ceia, onde, segundo Sta. Teresa Benedita da Cruz, começou verdadeiramente a vida da Igreja[22].

4.º Mistério: a Transfiguração de Jesus

Este é o Mistério da Luz por excelência. Com efeito, nas Bodas de Caná, no meio da alegria dos esponsais, na festa que era a celebração das núpcias, Jesus, ao introduzir, como vimos, uma tonalidade chiaroscura com a observação que faz a Sua Mãe (Jo 2,4), abre por assim dizer uma brecha de Dor no meio da satisfação generalizada que se seguiu à chegada do «melhor vinho» (Jo 2,10). Aqui, no Tabor[23], no meio do pasmo dos Apóstolos, futuras «colunas» da Igreja (Gl 2,9), Pedro, Tiago e João, abre-lhes um abismo de luz resplandecente, de uma brancura inigualável (Mc 9,3). Em Caná, levanta um pouco do véu sobre a Sua Paixão, Morte e Ressurreição; aqui, nesta antevisão da Glória e comprovação «como num espelho» (1Cor 13,12) da Sua divindade «antes da criação do mundo» (Jo 17,24; Ef 1,4; 1Pe 1,20), mostra-nos já não apenas um vislumbre da Sua Ressurreição, mas do Seu triunfo final, porque «Eu já venci o mundo» (Jo 16,33). Deste modo, tal como João Baptista perante Jesus (Jo 1,6-8; 3,27-30; 5,33-36), este Mistério Luminoso só vacilará na sua luz perante a Ressurreição.

5.º Mistério: a Instituição da Eucaristia na Última Ceia

«Para isto nasci e para isto vim ao mundo: para dar testemunho da Verdade. Quem vive da Verdade escuta a minha voz» (Jo 18,37). Esta é a luz lançada sobre o último Mistério Luminoso. Se o 1.º inaugura para todos os homens, com o Baptismo, o estado de Filiação divina, “como a água apaga o fogo” [24], fazendo de todos um homem novo, perdoando-nos o pecado original e os outros, inserindo-nos na Igreja e fazendo de cada um de nós templos do Espírito Santo; se o 2.º, ao anunciar veladamente a Cruz, da qual “não está ausente nenhum exemplo de virtude” [25], nos relembra o amor de Cristo «até ao fim» (Jo 13,1); se o 3.º nos abre à Salvação trazida por Cristo, que assim nos «trouxe Deus: agora conhecemos o Seu rosto, agora podemos invocá-Lo»[26], no anúncio constante do Seu Reino; se o 4.º nos remete para a Glória do Céu, essa “luz suprema, (...) [e] felicidade prometida” [27], então este 5.º Mistério Luminoso escancara-nos a porta da Eternidade. É o Mistério que mais nos aproxima de Deus, «mar de paz»[28]. Assim, na Eucaristia, está Deus, porque está Cristo: «para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em mim e Eu em ti; para que assim eles estejam em Nós e o mundo creia que Tu me enviaste» (Jo 17,21). E, assim, “instituiu este admirável Sacramento (...) para que, ficando este Sacramento no mundo, ficasse também Ele connosco no mundo” [29].

Mistérios Dolorosos

Os Mistérios Dolorosos ou da Dor, salvíficos e expiadores, antecedem assim os da Glória, porque Cristo Crucificado não é escândalo nem loucura, mas poder e sabedoria de Deus (1Cor 1, 23-24), “Salvação, Vida, Glória, Alegria, Esperança e Misericórdia” [30], e “certo é que sem comparação é maior a bondade e a caridade de Cristo que a malícia e o ódio do demónio” [31].
«E eles desprezaram a terra
de delícias» (Sl 105,24)

1.º Mistério: a Agonia de Jesus no Getsémani
Chegou, enfim, a hora de Jesus, da qual Ele disse aos que O prenderam, “armados de fúria e inveja” [32] : «esta é a vossa hora e o poder das trevas» (Lc 22,53). Aqui, o sono dos mesmos discípulos da Transfiguração (2Pe 1,16-18) é o primeiro sinal da dispersão das ovelhas[33], que até Emaús (Lc 24,13-35) seriam “rebanho sem Pastor nos montes bravos” [34]. Da agonia à sepultura, para que pudesse «congregar na unidade todos os filhos de Deus que andavam dis- persos» (Jo 11,52) eis-nos, portanto, perante o sacrifício redentor de Cristo no Calvário.

2.º Mistério: a Flagelação de Jesus

«Deus não pode padecer, mas pode compadecer-se»[35]: nesta frase maravilhosa [36] está encerrado todo o Mistério da nossa Redenção. “Deus, Ele mesmo, Se fez homem para poder padecer com o ser humano, de modo muito real, na carne e no sangue: (...) a partir de lá entrou em todo o sofrimento humano (...) a con-solatio, a consolação do amor solidário de Deus, surgindo assim a estrela da esperança” [37], como estrela da manhã nos nos- sos corações [38].

3.º Mistério: a Coroação de Espinhos

O que mais sobressai nestes Mistérios de Dor é a malícia dirigida ao Redentor (Sb 2,21)[39], cujos pormenores nos custam na razão inversa da sua aparente insignificância: a acusação de impostura, a necessidade de escondimento, o beijo no Getsémani, as bofetadas, as
idas e vindas amarrado como atracção de circo, a troca por um assassino, o manto escarlate, a coroa de espinhos, a cana, o assombro inútil do Procurador Romano, a encenação no Gabatá, as vestes repartidas aos dados, os salteadores à direita e à esquerda, a troça para que desça da Cruz, a esponja embebida em vinagre, tudo isto o Salvador, o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo 1,29), previu e aceitou na fidelidade à Verdade do Pai (Jo 7,28; 8,26; 12,49).

4.º Mistério: a Via-Sacra de Jesus para o Gólgota

Uma das últimas humilhações que pode ser feita a um condenado é cavar a própria vala para onde será daí a pouco lançado. Algo parecido de supremo sacrifício acontece aqui a Jesus, o Carpinteiro-Rei obrigado a carregar a madeira mais ou menos aparelhada do instrumento ao mesmo tempo de tortura e de ignomínia, ao qual iria daí a pouco ser pregado como um malfeitor (Act 2,22-23). Mas «a doçura desses braços há-de exceder incomparavelmente todo o fel que as penas deste mundo podem dar»[40].
“O felix culpa, quæ talem ac tantum meruit habere Redemptorem!”

5.º Mistério: a Crucifixão do Filho de Deus

“Os ouvidos da Virgem ouviram essas marteladas [dos cravos na Cruz] e receberam esses golpes em cheio no coração” [41]. S. João (“disse-o quem conhecia o que tinha” [42]) afirma no seu Evangelho e na Primeira Carta que «Deus amou tanto o mundo que lhe entregou o Seu Filho Unigénito, a fim de que todo o que n’Ele crê (...) tenha a Vida eterna; e o amor de Deus manifestou-se desta forma no meio de nós (...) Não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo quem nos amou e enviou o Seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados» (Jo 3,16/1Jo 4, 9a.10), «para que, mortos para o pecado, vivamos para a Justiça» (1Pe 2,24), a mesma Justiça que Jesus invocara no Seu Baptismo (Mt 3,15). “E entregou o espírito nas mãos de Seu Pai, (...) e morreu, não por uma necessidade natural, mas por Sua própria vontade (...) Quando baixou a cabeça, fê-lo por Sua vontade e cheio de poder, ao passo que os outros o fazem depois da morte por fraqueza. Esperou que todas as coisas estivessem consumadas, e morreu” [43]. Oh ditosa culpa, que nos mereceu tão grande Redentor! [44]

Mistérios Gloriosos

Os Mistérios Gloriosos ou da Glória encerram o Rosário, porque “a contemplação do rosto de Cristo não pode deter-se na imagem do Crucificado. Ele é o Ressuscitado!” [45] Assim, a contemplação de Cristo Ressuscitado “deve levar os crentes a tomarem uma consciência cada vez mais viva da sua nova existência em Cristo, uma existência de que o Pentecostes constitui o grande ícone. Desta forma, os mistérios gloriosos alimentam nos crentes a esperança da meta escatológica, para onde caminham como membros do Povo de Deus peregrino na História. Isto não pode deixar de impeli--los a um corajoso testemunho daquela grande alegria que dá sentido a toda a sua vida” [46], porque «Eu estarei sempre convosco até ao fim dos tempos» (Mt 28,20). “Pode-se assim dizer, portanto, que cada Mistério do Rosário, bem meditado, ilumina o Mistério do Homem.” [47]

1.º Mistério: a Ressurreição de Jesus

Deste Mistério, anunciado já na Transfiguração, deriva a fé em todos os outros. É dele, por conseguinte, que todos os outros germinam. Lázaro saíra do túmulo «de mãos e pés atados com ligaduras e o rosto envolvido num sudário» (Jo 11,44). Na Ressurreição de Jesus, «os panos de linho estavam por terra (...) e o sudário (...) enrolado à parte» (Jo 20,5-7). Se Cristo não ressuscitou, a nossa fé, garantia das coisas que se esperam e certeza daquelas que não se vêem (Heb 11,1), cai por terra... (cf. 1Cor 15,14.17): “ressuscitou para nos ensinar a esperar a Ressurreição” [48]. Compartilhemos do júbilo de Nossa Senhora ao saber Jesus Ressuscitado: “Rainha do Céu, alegrai-Vos, Aleluia!...” [49].

2.º Mistério: a Ascensão de Jesus ao Céu

«O Espírito Santo (...) há-de recordar-vos tudo o que Eu vos disse» (Jo 14,26). Meu Senhor e meu Deus! [50] : “Aquele que Se humilhou e sofreu mais que todas as criaturas, aqui é engrandecido e levantado sobre todas elas” [51]. O alcance deste Mistério é que o Espírito Santo incansavelmente nos relembra que, com a Ressurreição do Senhor, fomos com Ele colocados para sempre à direita do Pai[52] e, assim, voltamos para casa [53] cheios da alegria inexcedível dos anjos no Natal do Deus-Menino[54]. Então, somos fortalecidos na fé, alimentados na esperança e dilatados na caridade: «sereis minhas testemunhas (...) até aos confins do mundo» (Act 1,8). A palavra grega para testemunhas é martyres.

3.º Mistério: a Vinda do Espírito Santo sobre Nossa Senhora e os Apóstolos

Neste Mistério, Jesus coloca os Seus perante o imutável destino de serem Cristo para Cristo[55]: a Evangelização, o que liga este Mistério ao do Anúncio do Reino de Deus. E os Apóstolos, «partindo, foram pregar por toda a parte» (Mc 16,20), baptizando «em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo» (Mt 28,19). A Maria, Sua Mãe, estava reservado outro papel na História da Salvação.

4.º Mistério: a Assunção de Nossa Senhora ao Céu

Em todos estes desígnios salvíficos de Deus, não podia ficar na terra aquela que fora testemunha especialíssima da Sagrada Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo pelo facto tão simples e, ao mesmo tempo, tão grandioso de ser Sua e nossa Mãe, a Imaculada Conceição, dada pelo Salvador à Humanidade (Jo 19,26-27). E assim como a Mãe de Cristo foi por um momento guardiã do corpo de seu Filho depois da descida da Cruz, na pietà, assim Nossa Senhora é para sempre guardiã da Sua vontade, no Céu: «sem Mim, nada podeis fazer» (Jo 15,5).

5.º Mistério: a Coroação de Nossa Senhora no Céu

Maria participa para sempre da Glória de Jesus no Céu, sentada aos pés da Santíssima Trindade, “glória de Jerusalém, a alegria de Israel, a honra do nosso povo” [56]. Vinde, Espírito Santo, vinde por intermédio de Maria!

laus deo
virginique
matri

N O T A S

[1] Como diz a salva dos Romeiros nos Açores durante a Quaresma (cf. Regulamento, Art.º 11, 32 e 33, in http://romeirosterceira.blogspot.pt/2008/01/regulamento-de-romeiros-iv.html) [4.4.2012]
[2] As citações aqui empregues são de João Paulo II, Carta Ap. Rosarium Virginis Mariae (2002), 23.
[3] S. Bernardo, Sermo In Laudibus Virginis Matris I, 5, BAC, Madrid, 1994, p. 607.
[4] Idem, ibidem, IV, 8, p. 671. Cf. Tg 1,21.
[5] Cf. João Paulo II, op. cit. (2002), 7.
[6] Pessoalmente teria preferido usar o adjectivo jubilosos em vez de gozosos, termo que a tradição consagrou.
[7] João Paulo II, op. cit. (2002), 20.
[8] Sta. Catarina de Sena, Dialogo, 167, BAC, Madrid, 2007, p. 433.
[9] Lc 2,49. Cf. Lc 8,21; 11,28; Jo 2,4; Mt 12,48; Mc 6,4.
[10] In Vida de Jesus Cristo, trad. de M. A. de Sá e M. Martínez, Diel, Lisboa, 1998, cap. 9, p. 74.
[11] Cf. João Paulo II, op. cit. (2002), 21.
[12] Cf. Cantar da Alma que folga em conhecer a Deus por fé: “Que bem sei eu a fonte que mana e corre, / mesmo sendo noite! / (...) É claridade nunca escurecida, / e sei que toda a luz dela é nascida, / mesmo sendo noite”, in http://comsantateresa.org.br/website/index.php?option=com_content&task=view&id=513 [4.4.2012]
[13] João Paulo II, op. cit. (2002), 20.
[14] Sta. Catarina de Sena, op. cit., 135, p. 337.
[15] Cf. João Paulo II, op. cit. (2002), 14.
[16] Cf. idem, ibidem, 16.
[17] J. P. Batut, [Bispo Auxiliar de Lyon], Crer na Ressurreição ou A Lógica do Amor, trad. de T. M. Fernandes, in communio, Ano XXVIII, n.º 1/2011 (31/3/2011), p. 7.
[18] Como são designados os Romeiros na ilha Terceira durante a Quaresma. Cf. http://romeirosterceira.blogspot.pt
[19] Do Prefácio da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.
[20] Bruno Maggioni, in reino de deus, Christos, Editorial Verbo, Lisboa, 2004, p. 762.
[21] Cf. J. P. Batut, op. cit., pp. 9-10.
[22] Cf. Edith Stein, La Prière de l’Église, in Source Cachée, Œuvres Spirituelles, Paris/Genève, Cerf/Ad Solem, 2011, p. 55.
[23] “Neste monte solitário (...) se dá a provar uma gota daquele rio que alegra a cidade de Deus (Sl 45,5) e nele, finalmente, se dá a provar aquele vinho precioso que embriaga os moradores do Céu”, in Frei Luís de Granada, op. cit., cap. 14, p. 121.
[24] S. João de Deus, Cartas..., in Liturgia das Horas (LH), II vol., 5.ª ed., Gráfica de Coimbra, 2009, p. 1482.
[25] S. Tomás de Aquino, Collatio 6 super Credo in Deum, in LH, III vol., 5.ª ed., Gráfica de Coimbra, 2009, p.1227.
[26] Josef Ratzinger [Papa Bento XVI], Jesus de Nazaré, trad. de J. J. F. de Farias, A Esfera dos Livros, 2.ª ed., Lisboa, 2007, p. 77.
[27] Sto. Anselmo, Proslogion, 16. 26, in LH, II vol., op. cit., p.1553/4.
[28] Sta. Catarina de Sena, op. cit., 53, p. 148.
[29] Frei Luís de Granada, op. cit., cap. 19, p. 171.
[30] Saltério, 4.ª ed., SNL, Gráfica de Coimbra, 2005, p. 92. Cf. 1Cor 1,30.
[31] Frei Luís de Granada, op. cit., cap. 24, p. 204.
[32] Idem, ibidem, cap. 20, p. 182.
[33] Cf. Is 53,6; Mt 9,36; Mc 6,34.
[34] Do Hino de Vésperas do Tempo da Quaresma I, in LH, II vol., op. cit., p.33. Cf. Mt 26,31.
[35] S. Bernardo, Sermo XXVI, 5 in Cantico Canticorum, BAC, Madrid, 1987, p. 373.
[36] Bento XVI, Encíclica Spe Salvi, 39.
[37] Idem, ibidem.
[38] 2Pe 1,19; Cf. Ap 2,28.
[39] “Cada qual se ocupa em Lhe dar a sua própria forma de tormento”, in Frei Luís de Granada, op. cit., cap. 16, p. 138.
[40] S. João de Ávila, Cartas, 58, in LH, II vol., op. cit., p. 1625.
[41] Frei Luís de Granada, op. cit., cap. 27, p. 220.
[42] Sto. Agostinho, Comentário a Isaías, 42, in Saltério, op. cit., p. 805
[43] Pascal, Escritos sobre a Graça, apud D. de Montalegre, Jesus Cristo de Pascal, Coimbra, 1952, p. 43. Cf. Jo 19, 30.
[44] Do Precónio Pascal.
[45] João Paulo II, Carta Ap. Novo Millennio Ineunte (2001), 28.
[46] João Paulo II, Carta Ap. Rosarium Virginis Mariae (2002), 23.
[47] Idem, ibidem, 25. Diz ainda o Papa: “se a Liturgia, acção de Cristo e da Igreja, é acção salvífica por excelência, o Rosário, enquanto meditação sobre Cristo com Maria, é contemplação salutar. De facto,
a inserção, de Mistério em Mistério, na vida do Redentor faz com que tudo aquilo que Ele realizou, e a Liturgia actualiza, seja profundamente assimilado e modele a existência.” (Ibidem, 13).
[48] Sto. Agostinho, Comentário ao Salmo 56, in Saltério, op. cit., p. 255.
[49] Das Antífonas finais à Bem-Aventurada Virgem Maria do Ofício de Completas, in LH, op. cit.
[50] Cf. Jo 20,28.
[51] Frei Luís de Granada, op. cit., cap. 30, p. 246. Cf. Heb 7,26.
[52] Cf. Ef 2,6-7.
[53] Lc 24,33.52; Act 1,12; 8,39. Fico a dever este regresso a casa a J. P. Batut, [Bispo Auxiliar de Lyon], Aprender a Viver as Virtudes Teologais com a Páscoa, a Ascensão e o Pentecostes, trad. de L. Castilho, in communio, Ano XXVIII, n.º 2/2011 (30/6/2011), p. 185.
[54] Lc 2,10-14. A aproximação entre a alegria dos discípulos depois da Ascensão e a dos anjos aquando do Nascimento é de A. Barbi, Ascensão e Pentecostes: Etapas significativas da História da Salvação, in communio, op. cit., p. 153.
[55] Cf. S. Gregório de Nazianzo, Oratio 14 De pauperum amore, 40, in LH, II vol., op. cit., p. 249.
[56] Da Antífona de Laudes do Ofício Comum de Nossa Senhora, in LH, op. cit. Cf. Jdt 15,9.

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