domingo, 2 de maio de 2010

Em romaria bebemos da Água Viva

"Estive algum tempo a apreciar estas duas figuras que compõem a cena da foto, por sinal numa mesa da sala cá de casa. Durante esse lapso de tempo em silêncio, veio-me à ideia turbilhões de imagens desse contraste entre o menino Jesus e o Romeiro. Veio-me à ideia passagens bíblicas como por exemplo, os pastores na adoração ao menino recém-nascido ou os apóstolos escutando as palavras de Jesus, entre outras passagens. Também me veio à ideia uma frase cheia de profundidade e sensibilidade que um irmão romeiro me disse há poucos dias sobre as romarias, que era mais ou menos o seguinte:
A romaria deverá ser o corolário de um ano de intensa oração, de testemunho “escondido” e meditação na palavra do Senhor Ressuscitado e não o seu começo
Realmente esta frase espelha o que deve ser uma romaria, tal como foi a vida de Jesus Cristo, um corolário de anos de intensa oração e testemunho do Pai, tendo terminado, não com a Paixão e Morte, mas sim com a Sua Ressurreição.
Como é belo o testemunho “escondido”, de cada um de nós perante a família, colegas e amigos durante o ano que antecede mais uma romaria. Como Marianos que somos ou tentamos ser, dia-a-dia, hora a hora ou minuto a minuto, é em silêncio e oração que meditamos na palavra do Senhor Ressuscitado, da água viva que Ele nos dá “Se conhecesses o dom que Deus tem para dar e quem é aquele que te está a pedir água, tu é que lhe pedirias e ele dar-te-ia Água Viva” (Jo 4, 10). É em silêncio, oração e em obras que damos testemunho dessa mesma água viva “Mas aquele que beber da Água que eu lhe der, nunca mais terá sede, pois esta Água converter-se-á nele em Fonte de água que dá a Vida eterna” (Jo 4, 14) perante a sociedade que nos rodeia.
Em romaria, seguimo-Lo como Maria seguia-O, de modo subtil, quase que ausentes deste mundo, mas com uma presença marcante e visível, tentando oração atrás de oração, beber dessa água especial. E por falar em água, lembro-me que li em tempos idos uma lenda árabe que dizia mais ou menos o seguinte:
“Contam que Deus um dia decidiu mudar todas as águas do mundo, e aquele que bebesse da nova água esquecer-se-ia da sua parte divina, esquecer-se-ia que era uma manifestação de Deus, o próprio Deus.
Apenas um único homem prestou a atenção devida às palavras do profeta que revelavam a intenção de Deus, e assim sendo, foi até a fonte e encheu muitos barris de água, que depois escondeu numa caverna que só ele conhecia.
Veio um enorme dilúvio que inundou toda a terra e levou toda a água que existia. Todas as águas foram trocadas e, cada pessoa que bebia da nova água imediatamente esquecia-se que era parte de Deus, esquecia-se que era uma criatura divina porque era filho da Divindade.
O homem que ouviu o profeta não bebeu da nova água e ia todos os dias ao seu esconderijo e bebia da velha água, aquela que não fazia esquecer. Ele era o único que sabia a verdade, o único que não se tinha esquecido quem era na verdade.
Depois de muito tempo, o homem que se lembrava começou a ficar incomodado com a solidão, com o isolamento ao qual era submetido por todos os outros, que não o compreendiam e que não sabiam o que ou quem ele era na verdade. A pressão da solidão foi muito grande, a vontade de relacionar-se outras pessoas começou a imperar e o homem acabou por beber da nova água.
Imediatamente esqueceu-se de quem era e tornou-se igual a todos os outros e nesse dia houve uma grande festa para comemorar a milagrosa cura do “louco”, que retornou de sua loucura para o convívio dos homens de bem.”
Esta curiosa lenda, remete-nos para um dos problemas actuais, quer da sociedade (no geral), quer em nós católicos (no particular), ou seja, beber da “água” que nos faz recordar quem realmente somos, pode muito bem significar caminhar em direcção a um isolamento e à solidão!
Nos nossos dias e na sociedade em que estamos inseridos, ao querermos beber dessa água, também leva a que nos achem loucos, incultos ou retrógrados até, e que eles os homens de bem é que realmente sabem quem são e quem nós somos…e quantas vezes somos tentados a acreditar nisso…
Como romeiros e em romaria, também por vezes somos alvo de julgamentos, considerados loucos ou desequilibrados, por apenas e tão só não seguirmos as “modas” ou as referências ilusórias de todos aqueles que precisam criá-las e alimentá-las para sobreviverem.
No entanto, ser cristão (no geral) e ser romeiro (em particular) significa, eliminar das nossas vidas a personagem conveniente ou as mil e uma máscaras que criamos, para sermos aceites segundo normas alheias ou regras impostas, e assim tornarmo-nos livres e predispostos a sermos aquilo que realmente somos, filhos de Deus. É verdade que este processo poderá ser algo doloroso, na medida em que nos obrigará a despirmo-nos dessas vestes imundas que nos cobrem, a ficarmos nus de todas as ilusões que nos dão conforto mas, é ao perder tudo aquilo que é supérfluo que poderemos beber da água viva e é ao perder isso tudo que encontraremos Deus Uno e Trino.
Volto a olhar novamente para este contraste peculiar e sui generis entre a grandiosidade de Deus no nascimento de Jesus (o menino) e a humildade de Cristo crucificado (romeiro), e noto que entre os dois existe uma distância enorme e humanamente intransponível entre a Sua concepção e a Sua ressurreição. Apesar dessa distância e sendo a romaria o corolário de um ano de intensa oração, testemunho e meditação, é também o local propício à nossa união com Cristo (fonte de Água Viva) e ambos encontrarmo-nos no “vazio do silêncio” que afinal de contas não nos distância, mas sim aproxima-nos de tal maneira que quase sentimos na boca o sabor das palavras:
“ – Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim
Artigo publicado no Jornal "A União" de 30 de Abril findo.

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