03:15 da
madrugada é a hora que marca o relógio da igreja.
A noite ainda é
uma criança e já se ouvem passos nas ruas que circundam o Santuário de Nossa
Senhora da Conceição. O céu está estrelado e o tempo está frio e seco. Alguns
carros vão chegando e parando. São os romeiros que vão chegando para partirem
para um retiro peculiar. Um retiro em que as quatro paredes, são os caminhos
desta ilha que irão percorrer, com Fé e Esperança.
O irmão Padre já
tem a igreja aberta e todas as luzes estão acesas, parecendo o Sol do meio dia,
no meio da noite profunda.
Vêm-me à ideia a
passagem bíblica das virgens que tomando as suas candeias foram ao encontro do
noivo e, tal como as prudentes, trazemos azeite nas almotolias, para que
possamos almejar a entrada na sala de núpcias.
Lanço a salva: “Seja
para sempre Louvada a Sagrada Vida, Paixão, Morte e Ressurreição de Nosso
Senhor Jesus Cristo”
De repente, no
meio das conversas normais entre irmãos, sorrisos no brilho dos olhos, faz-se
um silêncio...muito fecundo, e respondem: “Seja para Sempre Louvada, com Sua
e Nossa Mãe Maria Santíssima”
Entro para a
igreja pelo lado esquerdo e vou em direção as Sacrário. Alguns irmãos estão a
colocar os seus sacos cama no local apropriado, para que os piedosos irmãos sem
bordão, os levem, para onde iremos pernoitar. Já se encontram sentados alguns
familiares dos que irão sair, aguardando a Celebração Litúrgica.
Ajoelho-me com
devoção junto ao sacrário. Ele está ali, creio nisso. Durante alguns minutos
converso com Ele. Entre outras coisas mais íntimas e pessoais, peço-Lhe pela
romaria e pelos meus irmãos, para que tudo corra bem e no final possam dizer: “Até
para o ano irmão-mestre!”.
Desloco-me à
sacristia para ir buscar a Cruz, Aquela que o menino da cruz irá transportar.
Coloco-a em cima da mesa do Altar, juntamente com os lenços dos irmãos que irão
sair pela primeira vez.
Algum nervosismo
apoderar-se de mim. Apesar do tempo neste cargo, todos os anos é a mesma coisa.
Há quem diga que é bom, dizem que é sinal de estar alerta e não deixar o
marasmo vencer...não sei.
Desço a igreja
em direção à rua. Como, entretanto, já chegaram todos os irmãos, vou
distribuindo o guião das meditações diárias, para que cada um o guarde para as
alturas devidas.
Troco algumas
palavras e conselhos com o meu piedoso irmão Contra-mestre. Mais velho e mais
experiente na vida, tem-me ajudando muito. De certa forma, temo-nos ajudado
mutuamente, dentro e fora da romaria.
03:55.
Depois de nova salva
e resposta, formamos o rancho em duas alas.
Começamos com o
cântico à Padroeira e depois o cântico da entrada. Vamos entrando na igreja
pelas portas laterais, seguindo a letra do cântico. Todos os ali presentes se
levantam. As vozes ecoam dentro daquele espaço, fazendo alguma ressonância
agradável aos homens e a Deus, assim cremos.
Como todas as
missas, teve as suas leituras, homilia e demais situações. As leituras até
parece que foram escolhidas para nós, romeiros e pecadores confessos. A homilia
alimentou as nossas almas e aqueceu os nossos corações.
Na partida os
irmãos foram pegando no seu bordão, que aos pés da mesa do altar colocaram no
início… e única vez na romaria, beijaram a cruz, para saírem para o mundo, para
com o exemplo serem evangelizadores... Aos novos, foi-lhes também colocado o
lenço, símbolo do romeiro.
05:00.
Com o rancho
formado, profiro estas belas e profundas palavras” - Bendito
foi o dia e a hora, em que o Anjo São Gabriel desceu dos Céus à terra,
anunciado estas palavras: Avé Maria...”
Ainda noite, a Avé
Maria começa a ser ouvida por todos os que ali estão, mas também pelos
Anjos, Santos e Deus Nosso Senhor.
Em passos
largos, começamos a romaria. Terço do lado de fora e bordão do lado de dentro.
No meio, a Sagrada Família caminha connosco e há frente Jesus na cruz ao peito
de uma criança.
Caminhamos pelas
ruas, continuando o terço cantado até há 1ª paragem, na igreja de Nossa Senhora
da Guia. Um bom prenuncio para todos. Como já há algum tempo, ali está o
colaborador do Museu de Angra, com as portas abertas de par em par e as luzes
acesas. Depois das orações, entramos e “ajoelhai Pecadores, com os
joelhos no chão...”
Como orador
nesta 1ª paragem, gosto de começar com as palavras que um irmãezinho
orador há alguns anos atrás começava:
“ - Bom dia Pai,
bom dia Mãe.”
Realmente, por
muitas e belas palavras que possamos proferir, estas simples palavras sentidas
no coração do orador e nos que estão a ouvir, têm uma profundidade abismal, que
possivelmente alegra e rejubila nos Céus.
Continuo nas
orações e pedidos, sendo replicados pelos restantes irmãos.
Saímos dali em
direção há ermida de Santo Cristo, mesmo ali ao lado. A Lua lá no alto ilumina
o nosso caminho até lá.
A ermida
dedicada a Santo Cristo é pequena contrastando com outros locais de culto com o
mesmo orago, no entanto só Ele sabe o tamanho da nossa devoção, só Ele Vê e
Sente o que vai na nossa alma.
Saindo dali,
subimos a Rua do Desterro em direção à ermida de Nossa Senhora com o mesmo
nome. Na rua apertada, o cântico alternado do Avé Maria com o Santa Maria, para
além de ser dolente, começa aos poucos a aquecer as paredes frias das casas que
nos circundam.
Aproveito nesta
subida para ir falar com os irmãos oradores, no intuito de lhe destinar os
diversos locais de culto onde iram orar, até há primeira paragem técnica. Todos
eles aceitam.
Ao longe já vêm
as luzes da ermida acesas e há porta um dos elementos que, quase
religiosamente, nos recebe ano após ano com muito gosto. Paramos há porta e o
orador, começa as suas orações de entrada. Lá dentro, tem mais alguns elementos
da comissão fabriqueira daquela ermida. Entretanto chegam alguns familiares dos
romeiros que, de carro vieram até aqui para, de certa forma se despedirem.
Em duas alas
entramos, passando os dedos na água benta e benzendo-nos um a um, vamos para os
nossos lugares, ajoelhando nos bancos. O orador, igualmente de joelhos começa
as orações, agradecimentos, pedidos, aos quais vamos respondendo, quando para
tal o é, terminando com o cântico de saída. Sem nos apercebermos, algum tempo
já passou, mas que belo e sublime tempo ali passado, falando com Cristo e
pedido-Lhe pelos Homens.
Saímos em
direção à Ermida de São João de Deus, que fica logo ao lado de baixo do Império
do Divino Espírito Santo daquele lugar. No caminho e ouvindo o nosso cântico,
alguns cães ladram há nossa passagem. Alguns moradores vêm à janela ver o que
se passa. Reparo que um deles, veio de barreta e ao ver-nos passar tirou-a, em
sinal de respeito, não tanto por nós pecadores, mas sim pelo Jesus crucificado
que vai na frente. Ainda faltando algum tempo, já se ouve o repicar tímido do
sino ali existente. Tem que ser poucas vezes, porque a esta hora a maioria das
pessoas estão a dormir.
Ali chegados,
novo orador faz os cânticos de entrada e depois de entramos as orações
previstas no guião. Ermida pequena, mas que cabe um mundo inteiro. Há saída o
irmão Procurador das almas, tal como em todas as demais igrejas, vai ao
encontro dos irmãos e irmãs que ali estão, para saber se querem que rezemos por
eles ou por alguma intenção particular, dando também a pagela do rancho.
Continuamos a
caminhada até à ermida de Nossa Senhora de Fátima. Ali, duas ou três irmãs,
aguardam-nos, Ano após ano, aqueles minutos que ali estamos em oração com elas,
dizem ser um balsamo para as suas almas. Achamos ser exagerado, no entanto, só
Deus sabe o que elas possam querer dizer com essas palavras e só temos que
aceitar.
Dali, cantando o
Avé Maria, vamos em direção há primeira paragem técnica. Dizemos paragem
técnica, como podíamos dizer outra coisa. É a primeira de muitas ao longo do
dia e dos dias da romaria. Serve, não só para um golo de água, como para molhar
os lábios, um cigarro ou mesmo para uma necessidade fisiológica, a qual nenhum
irmão escapa. Serve igualmente para parar um pouco e descanso das pernas ou para
virar as meias ao contrário. Nesta paragem também é quando os irmãos
confraternizam um pouco mais, para além de outros momentos. Perto do Clube
Musical Angrense, pela primeira vez toco a cabrinha, como chamamos ao sino que
usamos, para as paragens. Os irmãos já sabem que chegou o momento de paragem.
Aproveito para
trocar algumas impressões com o meu piedoso irmão contra-mestre, assim como ver
no livrinho de tempos (criado logo na I romaria), para ver se estamos
ligeiramente atrasados ou adiantados. Estamos num bom ritmo. Aproveito para
trocar algumas palavras com os que saíram pela 1ª vez. Bem sei que ainda é
muito cedo para dizerem alguma coisa, no entanto, também me compete zelar por
eles e saber se estão bem. Lá para o 3º ou 4º dia, já será mais fácil dizerem
alguma coisa.
Olho para o
relógio (sim, tenho que o usar, assim como o telemóvel) e vejo que está na hora
de recomeçar.
Toco o cabrinha
e lanço a salva. Um a um levanta-se de onde está e vão formando o rancho. Que
bela imagem ver o rancho a formar em duas alas.
Vem-me há ideia
quando Jesus mandou os primeiros discípulos dois a dois…
Bendito foi o
dia e a hora, em que o Anjo São Gabriel desceu dos Céus à terra, anunciado
estas palavras:
Avé Maria...” e recomeça o cântico do Avé Maria com a saída dali
até há capela de São Rafael.
Chegamos ali e a
noite vai despertando timidamente. O orador destinado começa. As portas estão
entreabertas, basta um ligeiro empurrar e entramos, cada ala pelo seu lado.
Entre os cânticos e orações, reparo que o Frei responsável por aquele local
está numa outra porta e vai-nos acompanhado nas orações e cânticos. Aquando da
saída faço um ligeiro gesto de agradecimento, ao qual ele retribui. Não são
precisas muitas palavras para agradecer o facto de nos terem aberto as suas portas
aquela hora da madrugada, assim como na ermida do Sagrado Coração de Jesus,
logo ali ao lado. Nem precisamos de sair à rua para irmos. Uma porta que separa
a parte dos homens das mulheres está aberta para nós. Poupamos alguns passos e
alguns minutos que poderemos precisar mais tarde, seja para algum imprevisto ou
para o alongar da meditação.
Nesta ermida,
tem quase sempre algumas irmãs consagradas e algumas colaboradoras há nossa
espera. Também esta ermida é agradável á vista, com algumas imagens sacras.
Dali seguimos
para a igreja de Nossa Senhora da Penha, na freguesia de Posto Santo. Durante
este trajeto e por ser longo, quando o Santa Maria termina lanço a salva, e
peço que até essa igreja, sejam rezados dois terços, sendo um pelas intenções
de todos os benfeitores do rancho e outro por alguma intenção particular. Todos
aqueles que já nos apoiaram até há saída, bem como aqueles que nos irão apoiar
até ao fim da romaria, são benfeitores e, seja por um pedido de oração, uma
garrafa de água, uma partilha da refeição ou outra situação, sinto que o
primeiro terço deve ser por eles.
Rezando os
terços e com os olhos postos na ponta do lenço do irmão que vai há frente, até
a Ladeira da Pateira passa despercebida aos nossos olhos. A terminar o segundo
terço já estamos quase a chegar á entrada para a freguesia.
A meio da
descida, lanço novamente a salva, para recomeçarmos a cantar o Avé Maria.
Chegamos à
igreja, subimos as escadas ali existentes e, mais uma vez o orador faz o seu
papel muito bem, fora e dentro.
Saindo, rumamos
em direção ao pequeno almoço que todos os anos nos é oferecido pela Senhora
Carmelo e família, na casa de pasto ali existente. Depois de quase 5 ou 6 horas
sem comer e apesar de estarmos numa altura de jejum e abstinência, para quem caminha,
sabe bem comer um papo seco fresco e estaladiço, seja com doce, queijo ou
manteiga, acompanhado de um galão quentinho.
No fim da
refeição e depois de nos aprontarmos novamente e formamos o rancho, com a
presença desta tão simpática e afável senhora, fazemos os pedidos de
agradecimento. Pelos seus, pelo seu negócio e família, nunca esquecendo o seu
falecido marido e demais familiares. Pedimos também que Deus recompense a sua
generosidade. Depois, para continuarmos a romaria cantamos um cântico que o
nosso piedoso irmão sem bordão Luís Castro, tem o tom apropriado:
“Acabada a
refeição, Deus na terra destinou, foi este o divino pão, que a todos alimentou
(…)
Depois de mais
um convívio entre todos os irmãos e com o estomago mais aconchegado, vamos dali
para a Ermida de Nossa Senhora da Penha de França, para a 1ª meditação do dia.
Durante este
trajeto e depois de algumas Avé Marias onde havia casas, peço novamente mais 2
terços por intenções. Assim, não só não cansam tanto a voz como não apanham
frio nas cordas vocais, já que a manhã está fria e não parece que passe. Em
silencio cada um dos irmãos vais rezando para si o terço. Lá no fundo, após
alguns terços, alguma coisa começa a ecoar dentro de nós.
Enquanto vão
rezando, volto a ver o livrinho dos tempos e comparo com o relógio. Estando cá
atrás, tenho que fazer algumas chamadas, para quem nos irá dar passagem no seu
prédio, ganhando com isso alguns passos e tempo assim como às pessoas que irão
abrir a ermida.
Chegado à
entrada dessa ermida, subimos os 72 degraus que nos separam da ermida em si.
Chegados lá acima, o orador começa. Após isso, mais uma paragem técnica
seguindo-se da meditação já prevista e pensada pelo irmão Padre Dinis.
Entretanto dá para os irmãos conversarem e ver o que a vista de ali alcança. O
tempo, entretanto, mudou. Já não está tanto frio e o sol começa a querer dar um
ar da sua graça. Alguns irmãos tiram a sua cevadeira para descansarem as
costas, outros bebem um pouco de água e outros ainda fecham um pouco os olhos.
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